SONHO PAGÃO


De noite,

Nessas noites mornas e lentas,

Iluminadas pela lua sensual,

Quando as flores se abrem languescentes,

De corolas abertas, carnais,

Como corpos que se entregam

Vou, como uma deusa pagã em desvario,

De narinas dilatadas,

Procurar o excitante odor da tua pele.

A boca sedenta, quer beber-te no ar em brasa…

Ávido o olhar, busco encontrar-te

Nas trevas que m’envolvem…

Vejo-te em cada sombra que se adensa…

Ouço no canto das fontes,

A tua voz, que desconheço…

Tem o langor deste desejo que voa até ti…

Quebro de raiva os ramos que me ferem,

sôfrega dos teus beijos…

Piso…Mastigo as folhas secas que m’acolhem

Com a ilusão de morder-te a carne ardente…

Depois, caída na realidade da minha solidão,

Clamo por ti…

Berro na noite teu nome d’amor…

Aperto em meus braços a forma do teu corpo

E mergulho meus lábios nessa imagem,

Soltando uivos de prazer e desespero…


Vera Lucia





RUA 13

O beco é escuro…

Rua 13…Rua 13…

Bocas que sugam sangue

Olhos que choram sangue

Solidão e miséria.

É noite…

Sinto qu’é noite.

Não porque o sol s’escondesse

Não porque a sombra descesse

Mas porque no meu coração

O brado dessa miséria

Se fundiu, se faz sentir.

É a noite que nos arrasta.

Não é só a noite…

É noite. Uma noite espessa, sem paz.

Sem Deus, sem afagos,

Sem nacos de pão, sem nada.

Uma noite sem distâncias…

Apenas noite.

Mas por trás dos altos montes

A aurora vem surgindo.

Tudo o que à noite perdemos

O dia nos traz novamente.

Surgem aves chilreantes

Badalar manso de sinos

Cantos suaves do mar.

No alto da Rua 13

Brilha tremendo uma luz.

É o sol…A esperança,

Que um dia aquela rua

De almas sem luz e sem sol

Também veja o alvorecer.


Vera Lúcia




O PÁSSARO BRANCO


Um pássaro de asas brancas, desdobradas,

Anda a dançar na praia…

Há o rumor de ondas desgrenhadas,

Há espuma fervente e fria

E silêncio de ventos que não existem.

O barco da minha vida

Caravela d’esperança

Naufragou naquela praia,

Sem mar, só com o cantar doce, amargurado,

Do meu pranto.

Esse pássaro que nasceu comigo

Não mora numa gaiola,

Não nasceu nos verdes bosques,

Não é um pássaro de penas.

É um pássaro que canta

Nas longas noites sem luz,

Um canto de risos e prantos,

Um pássaro que agarrei

Com mãos trémulas de criança

E d’esperança.

Larguei para que voasse

E cantasse

Em todas as almas,

Fizesse nelas brotar flores,

Estrelas e amores.

O meu pássaro branco…

Branco como nuvens esvoaçantes,

Como um pássaro tecido de fios de luar…

Fugiu das minhas mãos trémulas de criança

Que se fechavam

E procuravam encurralá-lo

Em qualquer ninho de amor.

É agora um pássaro triste e desolado…

Um pássaro vagabundo

Açoitado por um vento furioso

Que o assusta e o arrasta p’ra solidão.

Um pássaro de asas murchas,

Roxas como lírios macerados,

Como um céu esfarrapado

Sem estrelas, sem luar.

Não houve ninhos que o abrigassem

Nem mãos trémulas d’esperança que o agarrassem.

De nada serviram meus prantos e minhas dores…

O meu pássaro branco, alvo como nuvens esvoaçantes,

Dança na praia que não existe,

A praia da solidão,

Ferido de dor e de morte,

Curvando as asas brancas

Que não são brancas,

Largando às ondas e aos ventos, as suas penas.


Vera Lúcia




CÂNTICO DOS CÂNTICOS


Queria ter confiança na eternidade

E na terra da verdade…

Queria nunca m’esquecer

Que volta sempre a primavera

Qu’entre pedras faz nascer rosas…

Queria deixar de ser este mar morto

Mar sem ondas e sem portos…

Queria deixar de mendigar

No silêncio das noites escuras

Caminhando por ermas estradas

Sem saber p’ra onde vou.

Queria saber quem me roubou minha coroa de rainha

Quem pisou minhas ilusões desfolhadas…

Queria ser a manhã qu’apaga estrelas

E encontrar amor em todas elas…

Queria ser a perdida, a que não s’encontra

Aquela que ninguém conhece,

A rutilante luz dum impossível…

Queria deixar de segurar nas mãos

O bem que nunca é meu

E encontrar no caminho o meu bordão d’estrelas…

Queria encontrar a água que procuro e de que estou sedenta…

Queria não pensar nos que andam descalços pela vida…

Nos que choram em insanas guerras…

Nos que mentiram e nos que mentem…

Não ter pena dos que em má hora nasceram…

Queria ter asas para voar e ser na fé

Na agonia dum moribundo…

Queria ser tudo…e não sou nada.


Vera Lucia